sábado, 1 de novembro de 2008

Aeroporto de Luanda e do Lubango






Já parece que foi há muito tempo que saí do ar condicionado do avião da SAA (South African Airlines) fretado pela TAAG que não pode voar pela Europa. Cadeiras apertadinhas, janelas fechadas durante grande parte do voo. Eu, ávida a olhar o céu, vi-me coarctada nessa contemplação pela hospedeira. Às escondidas ia espreitando por uma frincha do anteparo que entreabria, dando por fim razão ao ditame: uma intensa luminosidade branca e brilhante, estonteante, expandindo-se por todo o compartimento de forma avassaladora. Nada saudável.
Ansiosa, muito cansada, engripada e macerada por uma delonga na decisão de me desenraizar, de mudar para outro continente – vim da Europa para África – até me sentia espevitada pelas nuvens.
Parti de Lisboa de manhã entre abraços e beijos - alguns não dados mas imaginados - e cheguei a Luanda à noite. Primeira visão do avião a descer: uma cidade à beira água, cheia de luzes redondas amareladas e tremeluzentes numa extensão que não findava. Mais parecidas com chamas de velas. Muitas esferas opalescentes a mostrar a concentração e a dispersão de casas e fogos, bairros e ruas.
Saímos atarantados e receosos por causa das histórias que ouvimos. Mas nunca, nos três controlos de entrada, nos detiveram, a não ser para as formalidades alfandegárias, ou pediram gasosa. No entanto, acolheram-nos sem um sorriso, sem simpatia, sem nos olhar nos olhos. Percebi, posteriormente, que os cavalheiros desviam o olhar das senhoras e as damas desdenham dardejar a não ser por razões estratégicas.
Começou a espera das malas, lançadas pelos operadores num tapete rolante estreito e pequeno. Saíam devagar mas não morosas e ao inverso do check in. Prontamente surripiadas pelos seus donos para os carrinhos.
Um único carrinho estava livre. Percebeu-se porquê: rodinhas dissonantes e era preciso fazer o dobro da força para o empurrar. Símbolo-metáfora das nossas dificuldades em Angola e da nossa atitude perante as peripécias.
A certa altura, desistimos do carrinho e levámos nós as malas. Aeroporto 4 de Fevereiro, um edifício térreo com pouco espaço para os passageiros, os estrangeiros em filas diferentes para carimbar a entrada e nenhuma sala de espera para os visitantes, os que esperavam.
Estes estavam lá fora, apartados por um corredor rematado por cordas. E, mal se sai da zona de fronteira, uma onda de calor, de cheiro a terra, a gasolina e a humanos cerca-nos e imiscui-se desde os fios de cabelo aos poros minúsculos de todo o nosso organismo.
Estamos em África!....O atordoamento intensifica-se quando três homens estranhos nos pegam nas malas a nosso contragosto. Para eles são tão leves, uma pluma! Não sei como conseguem e quase voam a ponto de nos assustarmos com a possibilidade de desaparecerem com elas.
Querem dinheiro, nós não damos. Dizemos-lhes que não lhes pedimos ajuda. Só se afastam, e isto depois de baterem no vidro, de se encostarem às portas, quando o carro arranca. Não nos apetecia nada um reencontro destes no regresso. É agitação a mais e exige um estado de alerta e concentração nada apetecível.
Depois de dois dias e duas noites em Luanda, onde tomei um banho frio às festinhas por não haver água quente, tendo dormido num quarto de anexo num condomínio da Talatona, concretizei a inferência abstracta do que já tinha lido na blogosfera e do que me tinham contado de viva voz alguns amigos.
Muito trânsito, desrespeito pelas faixas, prioridades implícitas mas geridas a eito, crianças e graúdos nos passeios revolvidos e no meio da estrada aos solavancos, a vender tudo o que se possa pensar e nem lembrar. Conseguem desviar-se dos carros que arrancam aos cochichos e em velocidade, mas alguns são colhidos. Felizmente, nunca assisti a cenas dessas.
Demora-se a chegar aos sítios, já é uma regra e, por isso, sai-se muito mais cedo. Mas persiste a desculpa – não esfarrapada – do trânsito por se chegar atrasado, pois nunca se prevê o tempo que se vai levar.
Mussulo. Por um canudo. Mas conseguimos ir petiscar ao último bar da marginal de Luanda, o Caribe. Adorei o cremoso batido de abacate, mais saboroso que o de cá, do café Huila.

No Lubango….

Finalmente. Chegámos cedinho, de manhã, ao aeroporto de Luanda, zona dos voos domésticos. Fizemos o check in, entregámos a bagagem. E….aguardámos. Cansados, adormecemos para suspender a espera. Sabíamos que iríamos em classe executiva, que corresponde a uma turística num voo normal para termos um bocadinho de conforto, porém não adivinhávamos quantas horas esperaríamos.
Quando ouvimos a chamada, corremos para apanhar o bus que nos iria levar ao nosso terminal, esgotados organicamente pelo estado de vigília. Ao pé do avião, antes de entrar, tivemos ainda que reconhecer as malas, e apontá-las aos bagageiros, antes de subir as escadas. Idêntico processo à chegada ao Lubango.
Onde nos deparámos com mais uma fronteira e abertura da bagagem de mão para inspecção sem mais delongas porque tínhamos contactos para nos levar dali para fora o mais rápido possível.
Avistar a cidade das memórias paternas, Lubango, a antiga Sá da Bandeira, ainda da janela do avião era uma vontade muito grande. A paisagem é completamente diferente da de Luanda que se estende assoberbada e rectilínea por uma planície. Lubango cruza relevos, desenho por esquadro e compasso, reviravoltas na periferia, perspectivas planas e de súbito uma borda de montanhas pelos quais ondula o olhar.
A cidade está encastoada entre serranias a mais de mil metros de altitude, afirmando-se nos compêndios que apresenta um clima suave comparado com o paradigma de África. Perfeito para os morangos, as uvas, as peras, as maçãs, ou seja fruta incomum nestas paragens.
Colonizada no dealbar do séc. XX por pioneiros madeirenses e algarvios que cultivaram pomares, iniciaram fazendas, rasgaram estradas, construíram escolas e o liceu. O meu avô foi um deles, nascido em Lagoa, no Algarve, veio trabalhar como professor primário, tendo recebido distinções e louvores. Além de ensinar o alfabeto, montava teatros com os alunos e formava-os noutras artes. Era reconhecido, digo-o com orgulho.
Aqui, fundou a Escola Primária da Machiqueira que ainda existe, já a visitei por fora e achei-a enorme – pode ter sido acrescentada. Eu vim continuar a sua obra, já noutro nível: a fundação de uma escola de ensino superior. E ainda dizem que não há características inatas no ser humano. Eu sou um exemplo perfeito da influência dos arcanos: por lado de pai, proveniente de Angola, prossigo a pedagogia, por lado de mãe, oriunda de Moçambique, percorri os meandros da informação jornalística, partilhando o gene do meu bisavô, jornalista revolucionário e anti-regime. Em ambas as heranças, a preocupação de interpretar, descodificar mistérios, expressar narrativas, transmitir e debater conceitos.
Agora vivo na cidade do calor plúmbeo ao longo do dia e das trovoadas com relâmpagos, que não consigo fotografar, e chuvadas torrenciais das quais não se escapa ao fim da tarde. E da luz que falta por causa de algum raio que derrubou um cabo. E lá começam os 33 geradores a trabalhar. Há barragem, com uma grande capacidade de geração de energia, mas que não está activa porque tem defeitos de construção. Culpa dos brasileiros da Odebrecht, dizem os de cá. Será?

4 comentários:

Anónimo disse...

As fotografias são os desenhos das tuas emoções como dizes.São algumas delas elucidativas da grandiosidade desses espaços sem fim, outras esclarecem-nos sobre o quotidiano e até das boas vindas...
mas, sem elas, já imaginava com muita clareza toda essa ambiência, porque na tua escrita as palavras são filmes que se desenrolam...
Continua que outras gerações se irão deliciar com estes relatos!

Anónimo disse...

É um prazer lê-la. Felicidades para aventura que se propõe viver/construir.

Maria Ana

Shadydreams disse...

Maria Ana:

E é sempre um prazer ler os seus comentários. Viveu em África?

Shadydreams

Nuno Santos disse...

eheheehhe, lindo, são nessas pequenas coisas que os angolanos podem dizer "nós somos todos iguais, somos um povo comum, acontece-nos a mesma coisa, exactamente a mesma coisa a todos". O dilemma do aeroporto de luanda é suportável, de luanda ao lubango, bem... é difícil... Mas, minha cara, ir de luanda, ao lubango, do lubango ao cunene (ondjiva) e de ondjiva a catumbela(lobito, onde vivo) é algo trancendente!!!! E perdemos as nossas forças quando a justificação para essa rota absurda é apenas a de que as bagagens para catumbela estavam no fundo do porão... Oh God haja coração k aguente...
Saudações
N.S